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Liberdade de expressão artística e discriminação religiosa no caso Masterpiece Cakeshop v. Colorado

Quem mexeu no meu bolo? Liberdade de expressão artística e discriminação religiosa no caso Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission

Marcela de Azevedo Limeira


Há pouco mais de um mês, a Suprema Corte dos Estados Unidos proferiu a decisão mais aguardada deste ano: sete de seus nove ministros votaram em favor de Jack Philips, o confeiteiro que se recusou a fazer um bolo de casamento para a festa de Craig e Mullins, um casal homoafetivo, por causa de suas crenças religiosas. No entanto, ainda não sabemos exatamente o que essa decisão significa para os demais profissionais religiosos que trabalham no ramo de cerimônias e festas de casamento, já que a Suprema Corte preferiu não se posicionar sobre algumas questões importantes.

A decisão da Suprema Corte foi considerada “estreita”, porque ela não definiu claramente em quais situações alguém pode utilizar suas crenças religiosas como fundamento para descumprir as leis que proíbem a discriminação, nem afirmou explicitamente que produzir bolos de casamento pode ser considerado uma forma de expressão artística, protegida pela garantia da liberdade de expressão.

Afinal, qual foi o conteúdo dessa polêmica decisão? Por que decidir em favor do confeiteiro que optou por permanecer fiel à sua consciência religiosa, e contra o casal homoafetivo que se sentiu discriminado por causa de sua orientação sexual?

Antes de tentar responder a essas questões, é importante entender que, no estado do Colorado, onde ocorreu esse caso, existe uma comissão de direitos humanos responsável por fiscalizar o cumprimento das leis que proíbem a discriminação. Craig e Mullins se dirigiram até essa comissão quando Jack Philips se recusou a fazer seu bolo de casamento, e esta entendeu que o confeiteiro havia discriminado com base em orientação sexual. Segundo a legislação de Colorado, não se pode discriminar um indivíduo por causa de sua orientação sexual, raça, religião, entre outros critérios, nos locais abertos ao público em geral.

A Suprema Corte reafirmou que objeções religiosas e filosóficas ao casamento gay são visões protegidas pela garantia da liberdade de expressão, e levou em conta que, em sua decisão, a comissão de direitos humanos demonstrou clara hostilidade ao credo de Philips – o Cristianismo – de forma que a legislação não foi aplicada de maneira neutra em relação à religião. Isso ficou evidente quando a comissão afirmou que crenças religiosas não podem ser manifestadas na esfera comercial, e considerou a fé de Philips como desprezível e meramente retórica, chegando ao extremo de comparar a manifestação de suas sinceras crenças religiosas à defesa da escravidão ou do Holocausto.[1]

Além disso, a Suprema Corte apontou que, em pelo menos três casos em que alguém solicitou bolos contrários ao casamento gay, a comissão de direitos humanos entendeu que as recusas não violaram a legislação. Por exemplo, no caso da Azucar Bakery, William Jack solicitou dois bolos no formato de uma Bíblia. O primeiro, decorado com uma imagem de dois noivos (bonecos-palito) coberta por um “X” vermelho, e as frases “Deus odeia o pecado. Salmos 45:7” e “Homossexualidade é um pecado detestável. Levítico 18:22”. O segundo, decorado com a mesma imagem, porém com as frases “Deus ama os pecadores” e “Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores. Romanos 5:8”. A dona da confeitaria recusou-se a fornecer os bolos, porque eles contrariavam suas crenças morais. William prestou queixa junto à comissão de direitos humanos, alegando discriminação com base em religião, porque a confeitaria teria negado um serviço com base em seu credo religioso, o Cristianismo. A comissão entendeu que a confeitaria não discriminou William com base em sua religião, e que a recusa baseou-se no conteúdo da mensagem dos bolos, considerando que ela estava disposta a fornecer outros bolos para o consumidor, desde que não contivessem uma mensagem ofensiva aos LGBT.[2]

Essa decisão parece ser justa. O problema é que a comissão rejeitou argumentos análogos de Jack Philips, no sentido de que ele não discriminou por causa da orientação sexual de quem solicitou o bolo: sua recusa se deu por causa da mensagem comemorativa que um bolo de casamento transmite, e que ele não podia, em boa consciência, auxiliar a propagar. Para ele, o casamento é uma instituição sagrada, criada por Deus, e a homossexualidade é contrária às leis divinas, de forma que auxiliar a transmitir uma mensagem positiva ou comemorativa sobre um casamento entre pessoas do mesmo sexo violaria sua consciência religiosa. Quando se recusou a fazer o bolo de casamento, Jack Philips deixou bem claro para o casal homoafetivo que poderia fornecer a eles outro tipo de bolo para qualquer outro evento, ou outros produtos da confeitaria, desde que não fossem para o seu casamento. No entanto, no caso de Jack Philips, esses argumentos foram rejeitados, muito embora tenham sido aceitos no caso da Azucar Bakery.

Além disso, por acreditar que ele podia glorificar a Deus com seus talentos artísticos, Jack Philips sempre adotou a política de se recusar a fazer bolos que contrariassem suas crenças religiosas: ele não fazia bolos de Halloween, com mensagens indecentes ou profanas, contrárias aos Estados Unidos, entre outros. Ele já havia se recusado a fazer um bolo celebrando o divórcio e outro bolo ofensivo à comunidade LGBT, porque ele se considerava autor das mensagens dos bolos que produzia. Contudo, a comissão foi categórica ao afirmar que a mensagem comemorativa de um bolo de casamento seria atribuída somente aos noivos, e não ao confeiteiro. Curiosamente, esse raciocínio foi desconsiderado quando ela entendeu que a dona da Azucar Bakery era livre para se recusar a fazer os bolos com os versículos bíblicos.

Diante de todas essas circunstâncias, a Suprema Corte entendeu que a comissão não analisou o caso de Jack Philips de maneira tolerante e respeitosa em relação a suas crenças religiosas, contrariando o dever do Estado de aplicar as leis de forma neutra em relação às diferentes religiões, sem demonstrar qualquer tipo de avaliação sobre a sua legitimidade. Afirmou que não cabe ao governo expressar ou sequer sugerir se a motivação religiosa da recusa de Jack Philips é legítima ou ilegítima, e que o seu caso não foi analisado com a necessária neutralidade por parte do Estado.

Podemos concluir que, por mais que algumas particularidades do caso tenham contribuído para a decisão da Suprema Corte – especialmente a visível hostilidade em relação à perspectiva cristã sobre o casamento por parte da comissão de direitos humanos, que não foi refutada pela Corte de Apelação que julgou o recurso judicial dessa decisão – um importante princípio foi reafirmado: o Estado deve se manter neutro em relação às diferentes crenças e opiniões na sociedade.

Significa dizer: o Estado não pode deixar sua posição de neutralidade e adotar dois pesos e duas medidas nessas situações. Vale para todos a regra de que, se alguém abre seu negócio para o público em geral, deve auxiliar na propagação de todo o tipo de mensagem, ainda que ela viole sua consciência moral ou religiosa: tanto o confeiteiro cristão é obrigado a fazer um bolo de casamento para um casamento entre pessoas do mesmo sexo, como o confeiteiro pró-LGBT é obrigado a fazer um bolo com uma mensagem contrária ao casamento gay. Para uma sociedade que se propõe a promover a diversidade, essa regra equivaleria a um retrocesso.

Ou, ainda, vale para todos a regra de que os indivíduos são livres para seguir sua consciência moral ou religiosa em suas respectivas profissões, podendo se recusar a auxiliar na propagação de mensagens de que eles profundamente discordam. Essa escolha representa a constatação de que o Estado não consegue promover a homogeneidade entre seus cidadãos – e nem deve ter tal façanha como um objetivo. Para garantir a diversidade, ele deve desistir de fomentar o consenso, e encontrar meios que possibilitem a convivência dos cidadãos em meio ao dissenso.

[1] Página 2 da decisão, disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/17pdf/16-111_j4el.pdf. Acesso em 23/07/2018.

[2] Ver https://www.thedenverchannel.com/news/local-news/denvers-azucar-bakery-wins-right-torefuse-to-make-anti-gay-cake. Acesso em 09/01/2018. Traduções minhas.

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